sábado, 18 de setembro de 2010

Tango Brasileiro "versus" Maxixe


Os defensores da indistinção musical entre o tango brasileiro e o maxixe geralmente argumentam que a indicação de um ou outro destes 'gêneros' na partitura era uma escolha arbitrária dos compositores sob paradigmas socio-culturais da época. Ou seja, eles acreditam que os compositores de tangos brasileiros - geralmente pianistas ou "pianeiros", como alguns preferiam - assim chamavam suas composições para atribuí-las um "status" mais elitizado. Pois, a palavra maxixe, apesar de, naquele tempo, ainda não ser designação de gênero musical, já era carregada de uma conotação pejorativa por remeter à "vulgaridade" daquela dança.

Os críticos, nesta linha, sugerem por exemplo que Ernesto Nazareth "disfarçava sob esta denominação mais polida a verdadeira natureza do maxixe plebeu e equívoco que o animava"; que chamava seus maxixes de tangos "pela vontade de aristocratizar-se [...] como que para repudiar suas origens negras"1. Afinal, segundo Cazes2 o maxixe seria "o ponto mais próximo da cultura afro-brasileira, tendo acento parecido com o ylu de Iansã". De fato, o próprio Nazareth assume sua repugnância ante à confusão com que os seus tangos eram chamados de Maxixes, dizendo à Mário de Andrade que "os tangos não são tão baixos como o maxixes"3.

Sem também querer entrar em discussões de caráter puramente étnico, gostariamos de propor uma reflexão acerca de possíveis desdobramentos dessas "escolhas arbitrárias" em defesa de uma possível distinção estritamente musical entre o tango brasileiro e o maxixe. Dois dos maiores representantes do chamado tango brasileiro teriam sido, de fato, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Eram pianistas e tiveram uma formação erudita, de conservatório (ou "conservatorial"4, como diríamos hoje) uma combinação que durante muito tempo foi símbolo de status elevado na sociedade. E isto me leva a crer (ou ao menos suspeitar) que a maioria destas peças que tinham "tango brasileiro" como indicação de gênero foram originalmente compostas para o (ou ao menos "no") piano. Perguntado sobre como tinha chegado a compor seus tangos com esse caráter rítmico tão variado Nazareth respondeu com simplicidade que "ouvia muito as polcas e os lundus de Viriato, Calado, Paulinho Sacramento e sentiu desejo de transpor para o piano a rítmica dessas polcas-lundu"5.

Diz-se que "o maxixe tomou este nome dum sujeito chamado 'Maxixe', que num carnaval, na sociedade 'Os Estudantes de Heidelberg', dançou o lundu duma maneira nova", que teria sido "provavelmente aprendida, ou imitada, dos bailes da Cidade Nova, e transmitida a círculos mais amplos através dos clubes carnavalescos"6. Segundo Henrique Cazes7, o nome passou então a designar uma "maneira abusada de se dançar a polca abrasileirada". E, de fato, o lundu e a polca seriam as bases fundamentais do que viria a constituir a sonoridade do maxixe enquanto gênero musical, anos mais tarde.
"até meados da década de 1890, a dança do maxixe se fazia ao som de músicas que ainda não se chamavam assim: eram polcas, lundus, tangos (e todas as combinações desses nomes), era quase tudo, enfim, que fosse escrito em compasso binário, tivesse o andamento vivo e estimulasse o requebrado dos dançarinos através do 'sincopado'."8
Assim, a confusão não se restringia apenas ao nome. Antropofagicamente, "foi surgindo um gênero específico que [...] misturava a melodia da polca, com acentos modificados e linhas de baixo similares ao lundu", de forma que "proporcionasse maior deleite aos dançarinos"9. Além disso, ao contrário dos salões da nobreza, os bailes da Cidade Nova não eram animados por um piano, mas por grupos de choro e/ou bandas militares. E por tocarem aquelas músicas compostas no piano" com outros instrumentos, e por terem uma formação musical essencialmente popular e autodidata (bem diferente da formação dos pianistas de conservatório), aqueles grupos conferiam àquelas músicas um sotaque naturalmente diferente.

Ora, se os pianistas antes classificavam suas composições como tangos brasileiros por mera distinção social, cultural ou mesmo étnica (de forma mais abrangente) fato é que, depois de tanto tempo fazendo parte do repertório pianístico, estas composições (à base da rítmica d'aquelas polcas-lundu "transpostas para o piano") também teriam adquirido um "sotaque pianístico", em relação não só ao instrumento, mas principalmente à formação do pianista.

Assim, ficamos com a impressão de que aquela indistinção, apesar de ser construída sobre argumentos históricos bastante coerentes, baseia-se mais em questões etimológicas e etnológicas, ou seja na desconstrução da justificativa paradigmatizada que os compositores daquela época incluíam nos seus discursos [o maxixe é mais "baixo"]. No entanto, tal indistinção não faria mais sentido nos dias atuais se, por terem se desenvolvido em contextos sócio-culturais e instrumentos musicais distintos, estas duas 'indicações de gênero' tiverem evoluído para sotaques diferentes, o que pra nós parece natural que tivesse acontecido.
"Um problema à parte é a falta de jeito que os pianistas brasileiros têm pra tocar Nazareth. Se ouvirmos suas obras executadas pelos chamados pianeiros (como a suingadíssima Carolina Cardoso de Menezes), fica faltando sofisticação. Se as ouvirmos tocadas por pianistas clássicos, muitas vezes de sólida reputação no meio erudito, falta o suingue."10
O argumento principal desta reflexão é que diferenças sociais, orquestrais e, por consequência, culturais naturalmente conduzem a diferenças musicais. No entanto, esta é uma reflexão quase que puramente filosófica, e carece de análises musicológicas mais profundas sobre estas questões.
"O pesquisador, não deveria, em princípio, deplorar a 'imprecisão' de uma sociedade que chama indiferentemente de lundu ou de tango a mesma peça de música, nem afirmar que o dito lundu é 'na verdade' um tango ou vice-versa. O que se espera dele é que ele entenda por quê, e em que circunstâncias, diferentes nomes são dados ao que lhe parece ser a mesma coisa"11
Será que tango brasileiro e maxixe se "parecem" tanto musicalmente, mesmo sendo tradicionalmente tocados em instrumentos diferentes e por músicos com formações igualmente diferentes? E por que será que uma caixa clara parece acompanhar melhor uma banda militar tocando um maxixe de Pixinguinha, que um piano tocando um tango de Nazareth?

Notas:
1 Corrêa de Azevedo e Nogueira França apud SANDRONI 2001, p.79.
2 CAZES 1998, p.32.
3 SANDRONI 2001, p.79.
4 FEICHAS 2004.
5 Basílio Itiberê apud SANDRONI, 2001, p.78, grifo nosso.
6 ANDRADE apud SANDRONI, 2001, p.64.
7 CAZES 1998, p.31.
8 SANDRONI, 2001, p.81.
9 CAZES, 1998, p.31.
10 Ibidem, p.38.
11 SANDRONI 2001, p.83, grifo nosso.

Referências Bibliográficas:
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. São Paulo : Ed. 34, 1998.
FEICHAS, H. F. B. . Aprendizados de música formal e informal na graduação. In: V Congresso da Seção Latino-Americana da Associação Internacional, 2004, Rio de Janeiro. ANAIS IASPM-LA 2004.
SANDRONI, Carlos. Feitiço descente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed. : Ed. UFRJ, 2001.